Boas-vindas a Escreversos & Literaneios!
Há algumas semanas, ganhei de presente o livro Queria morrer, mas no céu não tem tteokbokki [죽고 싶지만 떡볶이는 먹고싶어, 2018, trad. Rafael Bisoffi, 2023], de Baek Sehee [백세희] — um livro de (não) ficção sul-coreana, diretamente baseado na vida da autora, em suas sessões de terapia e em sua busca no tratamento para a depressão.
Do ponto de vista literário, a obra não se destaca para mim. Além de pontos repetitivos — até mesmo questionáveis —, o desfecho é abrupto, mesmo quando se tem em vista que o processo de cura é tortuoso, e alguns dos textos soltos parecem deslocados do contexto geral.
Do ponto de vista da saúde mental, por sua vez, ao transcrever as sessões de terapia, Baek Sehee aborda uma série e reflexões sobre as relações que estabelecemos com as outras pessoas e com nós mesmes, o que torna a obra interessante — e, ao mesmo tempo, estabelece um diálogo com outras obras traduzidas pertencentes à chamada “literatura de cura” — em alta tanto na Coreia do Sul quanto no Japão.
O que mais me marcou na leitura, todavia, trata-se da minha identificação com a autora-personagem em sua relação com a escrita.
Primeiro, quando, em seu tratamento, ela identifica que a escrita deve fazer parte de sua vida nos momentos ensolarados também:
“Disseram-me uma vez que preciso ser capaz de escrever mesmo quando tudo está bem, e me pergunto se isso exige prática também. Só escrevo quando o tempo, meu corpo e minha mente estão sombrios. Quero escrever coisas boas enquanto penso em coisas boas.” (p. 44)
Assim como Baek Sehee, tenho a tendência de negligenciar a escrita e só me voltar para ela quando estou sobrecarregado com os fardos que tenho de carregar, sabendo que escrever me trará conforto e bem-estar. Por este mesmo motivo, no entanto, eu deveria manter a escrita como um elemento fundamental da minha rotina, e não só algo que busco quando quero me reconectar comigo mesmo ou com a minha vontade de viver.
Segundo, por ser formada em escrita criativa e trabalhar em uma editora, Baek Sehee, no texto “Uma vida sem modificadores” (p. 170-172) — ou seja, de qualificações como “formade em…”, “trabalha com…”, “estuda…” —, menciona a ansiedade de desempenho: o medo de ser exposte e avaliade ao executar uma tarefa, mais especificamente, ao escrever.
“A expectativa de que todos os estudantes de escrita criativa vão elaborar belas sentenças e de que todos os que se graduam em coreano (ou alguma outra língua estrangeira) falam coreano (ou essa outra língua) com perfeição é inibidora, na verdade. Cria uma pressão desnecessária.” (p. 170)
Essa pressão é a ansiedade de desempenho. A ideia de que a pessoa é formada em alguma coisa ou trabalha com alguma coisa cria a expectativa idealizada de que ela seja especialista em tudo sobre ela e, portanto, incapaz de cometer falhas — o que não é verdade.
“É também o motivo pelo qual não revelo o que estudei na universidade, se puder evitar. Minha irmã mais velha age do mesmo modo. Tendo estudado canto no Instituto de Artes de Seul, ela não recebe o devido valor se apresenta um bom desempenho, mas é fortemente criticada se, por acaso, erra uma nota. Ela vive com um medo constante de ser julgada com severidade. Muitas pessoas devem se sentir dessa forma. É por isso que não conseguimos aproveitar quando escolhemos estudar algo por amor. É por isso que alguns preferem se enfiar no buraco de rato mais próximo a se arriscar a desenvolver seus interesses.” (p. 170-171)
Assim como quem é formade em matemática não é uma calculadora humana e quem é formade em Letras não é uma gramática ambulante, ser formade em escrita ou trabalhar com escrita não é sinônimo de escrever com perfeição, e sim de ter ciência da complexidade dessa tarefa e, por isso mesmo, ter ciência de que desvios e aprimoramentos são naturais – daí a importância do estudo, da prática e da subjetividade, pois cada pessoa tem estilo e gosto próprios.
Além disso, quando pensamos em escrita(s), ou mesmo literatura(s), existem inúmeras subáreas relacionadas a ela(s), como gêneros literários — romance, conto, crônica, poesia, etc. —, gêneros ficcionais — fantasia, ficção científica, suspense, romance histórico, etc. —, movimentos literários — romantismo, naturalismo, realismo, modernismo, etc. —, e é impossível ser especialista em tudo.
Do mesmo modo, assim como o desvio de uma expressão não compromete a qualidade total da tradução de um livro de 500 páginas ou um erro de digitação não compromete a qualidade da escrita de uma obra, escrever um texto que você considera ruim não exclui todos os outros textos excelentes que escreveu. Às vezes, é uma questão de momento, ou uma questão de tempo — é importante que o texto e nós mesmes amadureçamos e nos aprimoremos.
O que não podemos é deixar que a ansiedade de desempenho nos impeça de fazer o que amamos — como sugerido pela autora, mas não praticado por ela. O que podemos — e devemos — fazer, por sua vez, é mudar o modo como enxergamos a opinião alheia e a própria perfeição para que elas não sufoquem os nossos sonhos — até porque opinião e perfeição são subjetivas: “opinião de quem e perfeição para quem”?
Nas palavras de Baek Sehee (p. 171):
"esses modificadores jamais poderão explicar a totalidade de uma pessoa."
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