Transições pandêmicas

Boas-vindas a Escreversos & Literaneios!


Há três anos escrevi esta carta com o intuito de compartilhar minhas vivências e, talvez, encontrar pessoas que estivessem vivênciando o mesmo que eu. Hoje a desenterro do fundo da gaveta como parte de um arquivo pessoal — na vã esperança de que ainda alcance o seu fim.


xx de xx de 2021


Cada história é única, cada história traz uma nova perspectiva, um novo ensinamento, e, muitas vezes, é por meio de histórias que passamos a nos conhecer melhor; como quando nos identificamos com um personagem ou com uma vivência e sentimos que há alguém no mundo — mesmo que seja no mundo ficcional — que nos entende profunda e verdadeiramente.

Tudo começou no momento em que eu percebi, pela primeira vez, quem eu era e como eu me sentia em relação a mim mesmo. Não foi um grande evento, não foi uma mensagem enviada pelos céus, não foi uma revelação chocante; eu simplesmente me olhei no espelho e, em um estalo, soube: eu era uma pessoa trans não binária.

É algo que a mente pode duvidar, mas que o coração sabe ser verdade.

E não importa o que qualquer um diga — mesmo você:

Uma vez que você se vê como verdadeiramente é, nunca mais consegue se ver de outro jeito.

É claro que eu também busquei confirmar essa visão analisando minhas vivências, fazendo terapia, bem como pesquisando sobre identidade, gênero e sexualidade. Ainda tenho muito a aprender, mas quero compartilhar os desafios que venho enfrentando desde então.

Primeiro, houve um misto de euforia e de assombro.

Mas esses sentimentos não sumiram de repente, acabaram se tornando companheiros de jornada que simplesmente vão e voltam como ondas visitando a areia e submergindo no oceano. A euforia como resultado da libertação das correntes, da descoberta da verdadeira essência, do sentimento de, finalmente, ter se entendido em um nível profundo e inexplicável; e o assombro por tudo ser um campo ainda inexplorado.

Um exemplo disso foi o momento em que percebi que deveria observar e experimentar: observar como eu me sentia, do que eu gostava, do que eu não gostava; experimentar coisas novas, novos pronomes, novos estilos, novos nomes. E, até então, parecia estar tudo bem. Mas, uma hora, guardar tudo passou a ser tão sufocante quanto antes. Eu me sentia feliz sendo eu mesmo, mas percebi que ainda não era eu mesmo com os outros, e isso foi desesperador.

Como começar uma transição social no meio de uma pandemia onde não há vida social?

O conflito virou o centro de tudo.

Por mais que contar para algumas pessoas tenha sido um ótimo apoio, ainda existem muitos obstáculos: questionamentos, dúvidas, afirmações, negações... Não havia ninguém que eu conhecesse que compartilhasse desses mesmo sentimentos, não havia ninguém com quem eu pudesse trocar vivências. Não ter uma vida social na qual eu pudesse conhecer novas pessoas e interagir constantemente com as pessoas que eu já conheço me impediu — e ainda me impede — de sentir minha transição de um modo mais completo e significativo. Eu me sentia sozinho.

Foi então que veio o medo e a insegurança:

O medo da realidade que as pessoas LGBTQIAPN+ enfrentam no Brasil.

O medo das violências físicas e psicológicas que podem estar espreitando em cada esquina.

A insegurança vinda de falas que questionam sua sanidade ou dizem que tudo sobre você parece insignificante ou inválido.

A insegurança de que ser você mesmo pode ser aquilo que vai pôr um fim aos seus sonhos ou à sua vida.

E é natural ficar confuso, perdido, deprimido e assustado com essas coisas, mas a verdade é que isso não deveria ser natural. Ter medo não deveria ser natural. E esse medo começou a me consumir completamente.

Então, eu precisava dar um basta.

Eu me recusei a voltar atrás em ser quem eu sou.

Eu me recusei a deixar esse medo se apossar de mim e me impedir de viver me sentindo bem comigo mesmo.

Vai ser difícil? Não deveria ser. Mas nada me parece pior que o arrependimento de ter vivido uma vida falsa por causa do medo.

Pessoas irão embora, oportunidades serão perdidas e haverá muitos momentos de sofrimento. Contudo, novas pessoas virão, novas oportunidades serão oferecidas e haverá muitos momentos de alegria também.

Há pessoas na minha vida que me apoiam e me amam da forma como eu sou, e eu serei eternamente grato a todas elas por todo o esforço que vêm fazendo para que eu me sinta bem e querido.

E é nelas que eu encontro o apoio para seguir em frente.

Assim como eu, se você estiver vivenciando sua transição na pandemia, busque alguém que possa te dar apoio, procure ajuda profissional, participe de comunidades on-line, pesquise bastante e, acima de tudo, lembre-se:

A pessoa que você é sempre será válida e nunca estará só.


Com amor e carinho,

Collin Jay

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